domingo, 13 de outubro de 2013

Dossiê CHRISTIANE F 6 — Uma Entrevista na Cadeia



UMA CONVERSA COM CHRISTIANE F. NA PRISÃO:


“EU PRECISO SEGUIR MEU CAMINHO ATÉ O FINAL”


Entrevista de Rolf Mühlemann á TV Radio Zeitung em 1986 junho 23

Pesquisa: Ernesto Ribeiro

Tradução: doutora Olga Belov

Zeitung: Christiane, quando nós nos encontramos em Hamburgo, há 4 anos, você estava longe da agulha. “Clean” (limpa) como se costuma dizer. Agora, você está encarcerada na prisão feminina de Berlim. O que aconteceu neste período?

Christiane Felscherinow: Uma porção de coisas. Eu me separei do meu namorado daquela época. Eu me mudei da estação de ferro Reeper, de Hamburgo, para a estação de Neukoelln, em Berlim. A partir daí, muita coisa deu errado.

Zeitung: Você quis e conseguiu ficar longe das drogas, mas foi apanhada, novamente, com drogas. Por que motivo?

CF: De certa forma, foi por uma desmedida ingenuidade minha ter a sensação de que eu poderia me tornar invisível. Muitas circunstâncias me levaram a isto, para que as pessoas votassem a me notar. E eu o consegui, na verdade sem querer, entrando novamente “em cena”. Fui roubada, a minha moradia inteira foi saqueada. Aí, precisei, novamente, de dinheiro. Fui pilhada, de maneira desavergonhada, por outros viciados, dependentes das drogas, quando eles todos tinham percebido que eu ainda possuía um pouco de dinheiro. Mas aí, eu sou bastante avarenta, no sentido de chegar a permitir que alguém tire o resto do que ainda poderia sobrar na minha conta bancária.

Zeitung: Como você chegou a obter mais dinheiro? Obter o dinheiro para a heroína, que é terrivelmente cara?

CF: Eu fui novamente, trabalhar nas ruas, para me prostituir. Nisto eu tinha adquirido uma experiência de profissional. Eu não precisava ficar em pé durante 12 horas, para este fim. Houve dias, em que eu pude ganhar em torno de 800 marcos alemães, sem qualquer problema.

Zeitung: Que tipo de homens, clientes, eram esses?

CF: Empresários, fabricantes, funcionários, casados e solteiros.

Zeitung: Isto não era frustrante, degradante?

CF: Houve também contatos humanos, interessantes. De alguma forma, se é honesto.
Há tantos homens que são enganados pelas suas esposas, ficando iludidos quanto aos sentimentos delas. Na prostituição (“no trottoir”), o “amor” é comprado, não é carregado de emoções. Os homens aceitam isto, como se fossem se alimentar, ou corressem de carro, na rodovia. Mas eles conversam. E pagam.

Zeitung: Foi a falta de dinheiro que levou você para as ruas, e finalmente a levou à prisão. Foi você que falhou, ou foi a sociedade? Você chegou a ser destruída por ela?

CF: Devo dizer que antes de ter uma recaída, fui muito louvada pela sociedade, muitíssimo admirada. Foi minha popularidade que me envenenou.

Zeitung: Você já esteve, certa vez, no passado, perto do suicídio. Aqui na prisão, você chegou a ser acometida por este tipo de sentimentos, novamente? Atração pela morte?

CF: Não. Aqui na prisão eu me tornei mais forte. Se eu, agora, chegasse a arranjar uma corda, eu me haveria de privar de experiências que eu ainda gostaria de ter, pelas quais, na verdade, necessito ainda passar.

Zeitung: Você amadureceu. Você está pensando em que auto-conhecimento, exatamente?

CF: Meu relacionamento com Deus se modificou, desde a nossa última conversa. Para mim, foi na fé que apareceu a possibilidade de não me endurecer em demasia, não me deixar cair em desespero, e não me sentir injustiçada. Desta forma, me tornei uma assídua freqüentadora da igreja.

Zeitung: E será que o querido Deus, ou uma outra potência superior que seja, representaria para você uma espécie de ente da sua confiança?

CF: Sim, de qualquer forma, nenhum crente (fiel) — mesmo rezando muito e assiduamente — poderá conseguir com que o tirem daqui, logo. Deus não vai poder me ajudar numa soltura antes do tempo, mas Ele me dará a força interior, assim como a força de vontade, de refletir sobre tudo, novamente, permitindo que me torne uma pessoa ainda mais experiente. Pois ainda não estou pronta para tanto, se você consegue entender o que quero dizer.

Zeitung: A sua detenção foi determinada a durar até quando?

CF: Contando a partir de 3 de janeiro de 1986, como eu mesma determinei aqui, por mais uns 10 meses.

Zeitung: E quando você sair daqui, no início de outubro, haverá alguém no portão para recebê-la?

CF: Sim, será meu novo amigo Michael. Eu me lembro bem que eu tinha lhe dito em Hamburgo, em 1982, que eu, até aí, nunca tinha conhecido uma boa pessoa entre os roqueiros punks. No entanto, o Michael é para mim o único caso. E, neste ínterim, ele abandonou o cenário do punk e está trabalhando, me escreve e me visita. Ele se tornou, desta forma, meu “porto seguro”. É um homem simples, e muito simpático.

Zeitung: Você chegou a chorar aqui na sua própria cela? Com freqüência?

CF: Sim, é claro.

Zeitung: Mais do que antes, lá fora?

CF: Também não, mas não adiantou nada eu ter chorado sobre certas coisas. Lá fora, eram freqüentes as brigas por ninharias, que levavam a pessoa ás lágrimas. Aqui é um pranto pelo reconhecimento. Um pranto pelo fato de que uma pessoa não se basta a si própria. Isto, às vezes, é muito duro.

Zeitung: Antes da sua recaída, houve também a sua aventura na Suíça. Você foi recebida pela família Keel de editores suíços que possui a editora Diógenes. Foi apresentada a celebridades, tais como Duerrenmatt e Fellini, também a David Bowie, entre outros. Como foi isso?

CF: Em primeiro lugar, devo dizer que a família Keel é a única que eu poderia descrever como “totalmente liberal”. Isto me deixou admirada, e eu me senti por um certo tempo muito à vontade lá. Mas também tive que admitir que não era o lugar certo para mim. Não poderia ficar lá um tempo muito demorado. Tive experiências muito belas, mas que não vêm me ajudando na minha vida posterior. Devo agradecer muitíssimo à família Keel. Eles me ajudaram como, e onde, puderam. Mas isto não é o suficiente. Eu é que — por conta própria — posso vir a mudar minha situação.

Zeitung: Como foi que você veio a conhecer estas as pessoas?

CF: Durante certa época, a senhora Keel tinha lá em Charlottenburg um atelier. Assim, eu vim a conhecê-la ali.

Zeitung: E a amizade de vocês chegou a terminar, neste ínterim?

CF: Não, a senhora Keel até esteve aqui três vezes. Mas, basicamente, devo manter uma certa distância deles. Não gostaria de esperar que as pessoas, agora, me dessem atenção e reconhecimento, em troca.

Zeitung: Que mensagem de experiência de vida você poderia transmitir para pessoas jovens,  ou da sua mesma faixa etária, que se encontrem em uma situação semelhante à sua?

CF: Isto me seria difícil de fazer, logo agora, quando eu mesma saí dos trilhos. O que eu posso apenas aconselhar é que se saia daquele caminho, e que se queira seguir uma carreira. Deve o indivíduo notar que ele é apenas uma pessoa comum. Não deve alguém se comportar como se tudo lhe caísse no colo, gratuitamente. Mas se alguém tiver a intenção de fazer algo que não pode deixar de fazer, que o faça. Mas esta pessoa deve seguir o caminho escolhido, até o fim. Como eu, por exemplo.

Zeitung: Você já chegou a refletir sobre como você iria se sentir, se tivesse que permanecer aqui mais tempo, talvez dois a três anos?

CF: Ainda não cheguei a refletir sobre isto, direito. Creio que seria bem mais duro para mim.

Zeitung: O que significa para você, finalmente, a palavra “liberdade”?

CF: (Joga o seu olhar sobre o pátio da prisão): Eu estou vendo que depois de solta, irei, novamente, enfrentar dificuldades. A assim chamada “liberdade” não representa nenhum paraíso.

Zeitung: Que idéia você faz do seu futuro?

CF: Eu percebi que para mim, pessoalmente, será preciso começar tudo, bem do início. Quando eu sair daqui, vou ter um emprego com uma locadora de filmes. Mas eu acredito que não vou ficar lá por muito tempo, fazendo o filme, pois eu tenho a opinião formada de que vou ter que conviver com pessoas que estão interessadas em carreira e progresso na vida. Pessoas que estão convictas, em grande escala, no que fazem, pois elas estão recebendo apoio de todos os lados. Para mim, isto seria uma coisa totalmente falsa. Eu gostaria de poder me manter de pé sobre minhas próprias pernas, sozinha. Por exemplo, eu gostaria — de preferência — de trabalhar totalmente incógnita em uma fábrica, na correia transportadora (“conveyer”), ou como empacotadora, ou algo do gênero. O que eu prometo a mim mesma, é que eu posso ser eu mesma, de maneira totalmente sincera e clara, em vez de ter que me esconder atrás de coisas artificiais ou falsas, que na verdade não são nada mais que “doenças da civilização”. Como a pressão para viajar, com o qual me vi confrontada.

Esta mania de se viajar, sem parar, me impediu de procurar construir-me um lar, em algum lugar. Sentia em mim um vazio enorme, que me devorava por dentro.  

Zeitung: Nunca se deve dizer “jamais”. A heroína não é mais um tema para você?
Você nunca mais vai se drogar?

CF: Vamos dizer desta forma: eu não estou mais usando drogas injetáveis. Eu devo lutar contra a idéia de ser uma pessoa que não pode mais aprender, um caso sem solução. Para mim, existe a esperança. Tenho a intenção de provar alguma coisa. Mas é claro que não posso excluir coisa alguma, em definitivo.

Zeitung: Se seu namorado Michael falhar, se ele a deixar “na mão”, você não voltaria a recair nas drogas?

CF: Não, aí eu faria alguma coisa. Aí, eu me submeteria à terapia, por exemplo. No momento, eu estou fazendo mais uma tentativa e, acredito que vou saber lidar com isto, bastante bem.

Zeitung: Para finalizar, vou fazer-lhe uma pergunta de “conto de carochinha”: Se eu agora colocasse diante de você uma mesinha mágica, o que precisaria estar em cima da toalha da mesma?

CF: (refletindo demoradamente): Eu acho que eu já tenho tudo de que necessito.





A capa do livro: em 1978 na Estação Zoo --- foto por Jurgen Müller-Schneck


Christiane Felscherinow aos 10 anos de idade e vestindo casaco verde




















Christiane F aos 15 anos ao ser julgada num tribunal em Berlim em 1978 janeiro

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